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Uma pessoa me contou que o ato de costurar é como costurar a própria vida, é como um colcha de retalhos. Júlia Mazzoni coloca o corpo, as histórias e pequenas (e intensas) partes de sua alma nos diversos bordados, papéis, fotografias e obras-memórias que produz.

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Ao olhar para a produção da artista, o corpo se faz presente da forma mais concreta e da forma mais simbólica. Entre essa dualidade encontramos obras como Quarentena (2020), nela diversos rostos se desconstroem e se transformam em retas produzindo o questionamento: por onde anda nossos corpos? Quais são os rastros que deixamos? Será possível se encontrar em meio ao caos?

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Entre o corpo e a abstração, a obra de Mazzoni carrega o afeto em meio ao caos. Basta olharmos para a obra intitulada de Dos abraços que eu não lembro a sensação (2022). Pintada com marcador, a obra traz algumas partes do corpo desenhadas na superfície de papel, as linhas de tricô são penduradas e cobrem os desenhos, aqui o corpo se faz presente quase na abstração. As lembranças de um corpo que já não lembra das sensações, mas lembra do Outro, do afeto. As linhas de tricô criam uma barreira como se não devesse tocar ou tentar, novamente, receber esses abraços, afinal sabemos que memórias não mudam, as lembranças permanecem intactas e mesmo assim, as lembranças desaparecem pelos corpos que se dissolvem em linhas retas.

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Essa não é a primeira obra que Júlia flerta com a memória, suas relações com a memória podem ser vistas nas fotografias da série Linhagens (2020-2021), sua relação com o corpo aqui se torna uma contação de histórias por meio das linhas, das marcas, das cicatrizes e dos sinais do seu corpo, do corpo de sua mãe e do corpo de sua irmã. A memória do corpo é registrada aqui por meio dos afetos e desafetos que o corpo recebe no cotidiano.

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Em Raízes (2022), a memória se torna a protagonista. Em um bordado de seu rosto e do rosto de sua mãe que se conectam por meio do cabelo e que se estende para buscar a conexão no pequeno cordão umbilical, Mazzoni invoca sua memória e a memória de sua mãe para se conectar ao seu passado, ao seu início.

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Porém a memória também pode ser apagada, esquecida, bloqueada. Entre a renovação da pele e o esquecimento do toque, a memória se torna apenas um pequeno resquício de algo que foi vivido e que agora é insignificante, como pode ser visto em sua obra intitulada de Libélula (2022), a obra é um pedaço de papel costurado a estrutura de madeira. O papel é preenchido por um rosto que se materializa em linhas trêmulas e finas e se envolve ao bordado com linha amarela. No rosto, um papel é fixado e repete a palavra memória, que é quase ilegível por causa do apagamento. A libélula se materializa aqui para deixar claro que as lembranças são esquecidas, elas se apagam. A obra lembra que a memória também desaparece da mesma forma que o corpo esquece o toque, o cheiro, o afeto.

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Por fim, Júlia Mazzoni nos mostra suas pequenas partes da alma, suas memórias e seus afetos por meio de um bordado que se constrói e se desconstrói por meio do corpo - sendo ele materializado no ato de bordar ou pelo próprio retrato. A artista constrói narrativas e cartografias de um corpo cheio de memória por meio do bordado, que se transforma na expressão desse corpo que também passa por diversos processos semelhantes ao ato de bordar e costurar. Será o nosso corpo uma grande colcha de retalhos? Mazzoni deixa essa pergunta para nós costurando sua própria história, seus próprios afetos e suas próprias metamorfoses. Julia compartilha conosco todos esses afetos e desafetos, como a própria artista borda em sua obra Diário: me sinto esmagada (de tanto sentir).

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E aí entendemos que para Mazzoni é necessário se colocar na obra, não importa como. É sobre a alma e sobre histórias carregadas pelo próprio corpo. Bordar é como as veias do corpo, é o que faz sua alma funcionar

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Rodrigo Ferreira

20/08/2022

Entre o corpo, a memória e o bordado de Júlia Mazzoni
Rodrigo Ferreira

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